terça-feira, 26 de junho de 2012


“A Lei no pensamento de Paulo”

Determinar o pensamento de um teólogo com o Ap. Paulo não é tarefa fácil, todavia, esta é a proposta da teologia bíblica.

O pensamento paulino acerca da Lei parece-nos, por vezes, quase contraditório. Os ensinos de Paulo sobre a Lei são sempre abordados a partir da perspectiva da experiência histórica, tanto do próprio Paulo como rabi judeu, como de um judeu típico do primeiro século da nossa era, sujeito à Lei. Contudo, o seu pensamento não tem de ser visto nem como uma confissão de sua autobiografia espiritual, nem como uma descrição do caráter legalista do farisaísmo do primeiro século, mas como uma interpretação teológica, feita por um pensador cristão, de duas maneiras de justiça: o legalismo e a fé.

Para conseguirmos abordar este tema, precisamos fazê-lo face ao fundamento triplo que encontramos em Paulo: a religião do Antigo Testamento, o judaísmo e as suas próprias experiências. No centro da religião do Antigo Testamento não podemos caracterizá-lo como legalista, pois a Lei não foi dada como meio para obter uma relacionamento justo com Deus através da obediência. A Lei foi dada a Israel como o meio de unir Israel ao seu Deus, fornecendo um padrão a ser obedecido. A recompensa para a obediência à Lei era a preservação do relacionamento positivo com YHWH. Além disso, a obediência exigida pela Lei não poderia ser satisfeita através de um mero legalismo, pois a própria Lei exigia amor a Deus e ao próximo. A obediência à Lei de Deus era uma expressão de fé em Deus; e somente os que tinham fé eram o povo de Javé. No período intertestamentário, deu-se uma mudança fundamental no papel da Lei em relação à vida das pessoas. A observância da Lei torna-se a base do veredito de Deus acerca do indivíduo. A Lei alcança a posição de intermediário entre o homem e Deus. E é este novo papel da Lei que caracteriza o judaísmo legalista: a Torah torna-se na única mediadora entre Deus e os homens, tudo gira à volta da observância da Lei. Aqui a fasquia não era alcançar a justiça pelo cumprimento integral da Lei, mas sim esforçar-se por regular a sua vida de acordo com a Lei; o próprio Paulo confessa ter tido este mesmo propósito de vida: uma vivência de obediência legalista à Lei. Paulo reconhece que foi o seu zelo excessivo pelo cumprimento da Lei que o cegava em relação à revelação da justiça de Deus em Cristo. Só através da intervenção divina a caminho de Damasco destruiu o seu orgulho e a sua "auto-justiça", e o levou a aceitar a justiça de Deus em Cristo. Com Cristo foi inaugurada a era messiânica, "as coisas velhas passaram e tudo se fez novo", e com Cristo veio uma nova era, na qual a Lei desempenhava um papel novo e diferente. Sob o antigo pacto, a Lei era um código externo, escrito, que colocava diante dos homens a vontade de Deus. O fracasso tinha como consequência a morte; neste novo pacto a Lei passa a ser um poder interior, vivificante, que produz a justiça. "Obediência à Lei não quer dizer seguir os preceitos detalhados escritos no Pentateuco, mas cumprir uma relação com Deus para a qual a Lei aponta; e isto prova, que é uma relação de não obediência legal, mas de fé."

A Lei não consegue transformar pecadores em homens justos por ser um código externo, e os corações pecadores dos homens necessitam de um poder transformador interior. A Lei é um código escrito e não uma vida concedida pelo Espírito de Deus. O propósito da Lei não é a salvação do homem, mas teve um papel no propósito redentor de Deus. A Lei mostrava o pecado, revelava a verdadeira situação do homem e a sua responsabilidade para com Deus. Daí que a Lei se torne num elemento de condenação, não por ela mesma, ela apenas revela o pecado, e esse sim traz a morte. A dispensação da Lei pode ser chamada de dispensação da morte, escravidão ao mundo, pacto de escravidão ou período de infância, quando se está sob o controle de tutores, como Paulo refere em Gálatas 3:23-26. "Cristo é o fim da Lei, levou a era da Lei até ao fim, pois cumpriu tudo o que a Lei exige”. A Lei não é má, pelo contrário, Paulo reconhece-a como sendo justa, boa, perfeita, porque vem de Deus, mas agora, o novo homem deve cumprir a Lei escrita em seu coração pelo Espírito de Deus. A redenção em Cristo habilita os crentes, a que de algum modo, cumpram a Lei. Agora o aspecto permanente da Lei é o ético (o amor a Deus e ao próximo em ação), e não o cerimonial. Cristo pôs fim à Lei como um modo de justiça e como um código cerimonial; mas a Lei como a expressão da vontade de Deus é permanente; e o homem habilitado pelo Espírito Santo e assim fortalecido pelo amor está capacitado a cumprir a Lei de uma forma que os homens, sujeitos à Lei, nunca conseguiram.

Paulo não considera a Lei meramente como o padrão divino para a conduta, embora tenha origem divina e seja boa. No entanto, devido à fraqueza e pecabilidade do homem, a Lei torna-se num instrumento de condenação, ira e morte. A vida sob a Lei é uma servidão da qual o homem necessita libertar-se (conf. Rm 7:12,14; 5:13; 4:15: 7:9; Gl 4:21-31).

Por fim, Paulo entendeu que a lei era boa para a vida cristã, como mandamento de Deus, mas que essa lei não poderia salvar, somente servia para mostrar a incapacidade do homem de se justificar e que apontava para Cristo. Para Paulo, seguindo a forma da igreja primitiva, através da morte de Jesus, do derramamento de sangue Deus purificou a humanidade (os que creem) da culpa do pecado e precisamente desse modo fez com que se tornasse realidade a Sua justiça de amor.

Bibliografia
Charles Ferguson Ball; "A vida e os tempos do Apóstolo Paulo", CPAD, Rio de Janeiro; 1998;
Russell Norman Champlin; "O Novo testamento interpretado versículo por versículo – vol.III"; Milenium Distribuidora Cultural; São Paulo; 1980;
Ridderbos Herman; “Teologia do Apóstolo Paulo”, Cultura Cristã, 2004.